domingo, 10 de agosto de 2008

A NOITE SANGRENTA



Prefácio de Raul Rego - Ver Aqui

DO CAPÍTULO - A República do Terror
«Eram duas horas da madrugada. A Camioneta Fantasma estava parada junto ao n.º 14 da Rua de José Estêvão, no Bairro da Estefânia. António Maria de Azevedo Machado Santos, o Machado Santos do 5 de Outubro de 1910, tem a sinistra viatura à sua espera. No segundo andar do prédio que habita, está já cabo Olímpio, o Dente de Ouro.
À ordem dos marinheiros, o guarda-nocturno abrira a porta da escada aos invasores. As coronhadas nos degraus acordam todo o prédio sob sono da madrugada. Um cunhado de Machado Santos, a ler na cama, ouve a barulheira. Pressentindo desgraça, apressa-se em proteger a família.
Na casa de Machado Santos, a esposa do almirante acorrera ao toque da campainha, procurando saber quem é àquelas horas da madrugada:
— Marinheiros! — Respondem de fora, com arreganho. — Queremos o Sr. Machado Santos. Tem de ir falar com o capitão Procópio de Freitas!
O almirante, já ao lado da esposa, vestido como calha, segreda que é melhor ela dá-lo por ausente de Lisboa.
— Ou abrem ou bombardeamos o prédio — ameaçam os intrusos, face à desculpa que os pretende iludir.
Seguidamente, um enorme fragor estremece a porta do almirante, ressoando por todo o prédio. Um tiro disparado no patamar era aviso de que o grupo do Dente de Ouro não se ralaria nada em fazer aquilo que ameaçava.
Machado Santos abre a porta, decidido a enfrentar a horda. A esposa treme em soluços de aflição.
— O que me querem?
A única resposta à vista são as armas engatilhadas dos marinheiros.
Pergunta de novo o que lhe querem.
Dizem-lhe que têm de o levar ao Arsenal, onde o capitão Procópio de Freitas pretende falar-lhe.
— É de mais! — protesta Machado Santos, já sem paciência. — Vocês esquecem-se de que sou vosso superior! De que sou almirante!
Um dos marinheiros começa a bufar de irritação:
— Ai... ai...
O Dente de Ouro, sem cerimónia e já experiente neste tipo de situações, toma a iniciativa de levar, fosse de que maneira fosse, a sua nova vítima. Arrogante, sabendo tudo o que pode fazer, bate com a coronha no sobrado, reforçando a ordem de marcha.
O almirante verifica ser inútil e perigosa qualquer resistência, em especial para as pessoas da família ali presentes. Um filho de Machado Santos estava, de pijama, no corredor, de pistola em punho e disposto a defender o pai.
Depois de acabar de se vestir, o distinto oficial da Marinha de Guerra Portuguesa mete tabaco no bolso, abeirando-se da esposa, que chora convulsivamente. Aperta-a numa última despedida e beija-a com veemência. Ela, em desespero, agarra-o pelos braços e pede-lhe que não vá. As lágrimas correm-lhe a fio, os soluços mal deixam perceber as suas palavras:
— Ai que mo vão matar! Ai que mo matam!
— Qual matar! Olha que ideia! — comenta cinicamente o Dente de Ouro.
— Nós levamo-lo ao Arsenal e trazemo-lo já — afirma outro dos criminosos.
— Não! Não o levem!
— Acabemos com isto. Vamos! — atalhou o Dente de Ouro, determinado em acabar com a conversa.
Faltavam alguns minutos para as duas da madrugada. Machado Santos entra na camioneta que tem à porta. Senta-se ao lado do condutor. O cabo Olímpio ajeita-se e senta-se ombro a ombro com o almirante.
A menos de 50 metros situa-se o Quartel de Cabeço de Bola, cuja porta de armas fica mesmo no enfiamento directo da casa de Machado Santos. As sentinelas desta unidade da GNR, onde se encontravam bem armadas duas companhias de Infantaria e um esquadrão de Cavalaria, assistem a tudo sem esboçar qualquer vontade de intervir.
A Camioneta Fantasma leva mais um condenado à traiçoeira morte que desde o princípio da noite espalhava o terror sobre Lisboa.
Pela Avenida Almirante Reis abaixo rola em direcção ao Arsenal da Marinha, transportando o mais famoso oficial da Armada republicana para a derradeira viagem da sua vida de pouco mais de quarenta e seis anos cheios de grandeza e de glória.
— Desça, almirante, que vai ser fuzilado!
Junto ao Largo do Intendente, uma avaria súbita no motor da camioneta impedira-a de continuar a marcha com destino ao Arsenal.
Os facínoras não perdem tempo:
— E se a gente o matasse já aqui? Temos de voltar cá a trazê-lo— adianta um dos marinheiros, aludindo às proximidades da morgue. Machado Santos não se deixa impressionar com as ameaças. Fala, discute, protesta: «E a voz daquele ingénuo, que quis ser político, jornalista, revolucionário e vai ser, de encontro a uma parede, um farrapo humano a escorrer sangue por todas as feridas, responde:
— Veja — diz ele para o bandido que lhe fala — que as minhas pulsações não aumentaram.»
No silêncio e solidão da Noite Sangrenta, um carro de aluguer, cedido pelo seu ocupante — um empresário de teatro que, mais tarde, aparecerá envolvido num famoso crime de estrangulamento —, leva para o necrotério o corpo do almirante. Os marinheiros que o transportam, ao apeá-lo do carro, sentem gemer e estrebuchar. Antes de entregarem o moribundo aos maqueiros da morgue, dão-lhe o golpe de misericórdia, acabam a obra cruenta à coronhada e a tiro.
Era manhã de mais um dia de Outubro de 1921. Neste mês fazia onze anos que o destemido oficial subalterno da Marinha gravara o seu nome na mais brilhante página da história republicana portuguesa.
Na verdade, não podia o destino reservar-lhe pior sorte. Um movimento revolucionário comandado pelo principal herói da que tinha sido, em 1891, a primeira grande revolta pela República, acabava, agora, em 1921, com a vida daquele que tinha conseguido levar aos apogeus do triunfo essa mesma República.»

Publicações Alfa, 1991

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3 comentários:

Anónimo disse...

Caro José Brandão,

Este livro foi um dos que mais me interessou da tua vasta obra. Revela, sem dúvida, uma faceta bem trágica da nossa história.
Tive a curiosidade de ir à Rua José Estevão ver o prédio 14 de onde saiu o grande heró Machado dos Santos para ser vilmenmte assassinado logo em baixo, perto do Martim Moniz.
Efectivamente o prédio está lá e é lindo com a fachada bem conservada em toda numa notável azulejaria. São dois prédios quase gémeos que ficaram no meis dos monstros de cimento. Já pedi ao actual Presidente da Cãmara para mandar lá pôr uma placa a lembrar o evento. Não se é possível e se o prédio tem senhorio e se este aceita tal facto.

Os dois prédio ficam perto do quartel da GNR que nada fez na altura para proteger o almirante e ainda há gente que acusa os governos de gastarem dinheiro com polícia à porta. Actualmente, a Ministra da Saúde que é minha vizinha não tem qualquer protecção.
Enfim, bastou uma noite sem autoridade para quase todo um governo demitido ser assassinado.
Foi tremendo, mas isso fazia parte de uma moda europeia ou mundial. Não esquecemos Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht também vilmente assassinados em Berlin quase na mesma época e muitas figuras. Só a grande carnificina da II. Guerra Mundial é que criou no espírito de muitos europeus a necessidade alguma estabilidade e respeito pelas instituições.
Hoje, sabemos que as revoluções do Século XX falharam por completo, tal como as ditaduras de esquerda ou direita. Apenas se salvou o "pior de todos os regimes, à excepção dos outros todos"; a democracia nas palavras de Chrichill.
Um Abraço
Dieter

Anónimo disse...

Desculpa lá uns erros resultantes da minha falta de visão. Carreguei depressa de mais no "publicar" sem ter acabado de rever o pequeno texto.
DD

Anónimo disse...

O meu amigo Dieter continua bom observador dos eventos históricos.
É bom que haja gente assim.
Continua que as tuas obervações trazem sempre algo de novo.
Um abraço do
JB